Teoria do Riso – o livro
perdido de Aristóteles.
Por Sérgio Medeiros
23/10/2016/ Fonte:
GGN
Anoto que, não uma, mas todas as
teorias até então atribuídas a Aristóteles sobre a Teoria do Riso estão fadadas
a circularem sob novas luzes.
Se, até então, para Aristóteles
segundo seus historiadores, o riso seria “próprio do homem”, sinal da
racionalidade humana, a necessária ligação do homem com os deuses através das
ideias que elevam o espirito – (teoria da felicidade), para seus detratores, o
riso rebaixava o homem, destruía a solenidade ou quebrava o dogma da fé e do
respeito devido a tudo que provém da divindade, por isso Jesus Cristo não ria.
No romance de ficção o Nome da Rosa,
o escritor e filósofo, Umberto Eco, baseia toda sua trama em torno do segundo
livro da Poética de Aristóteles, considerado perdido, e que, em linhas gerais,
teria o condão de consolidar a Teoria do Riso como sendo algo próprio do homem,
bem como fruto de sua racionalidade, o que poderia abalar a fé enquanto
fundamento reverencial de temor a Deus e de respeito à instituição Igreja e a
seus representantes na terra.
Entretanto, recentes descobertas,
ainda não confirmadas em sua inteireza sobre a autenticidade dos escritos, nos
levam a outro caminho, que, não obstante diverso dos que eram aventados até
agora, comprova o potencial revolucionário desta obra e o porque da sistemática
tentativa de destruir sua propagação através dos séculos.
Introdutoriamente, como acima
sinalado, informo que muitas das especulações acima, e que balizaram durante
séculos a discussão sobre a gênese do riso não guardam correspondência com a
real definição posta nas recentes descobertas.
Do que se pode antever, ainda que
esparsamente, oriunda deste recentíssimo achado, é que estamos frente a uma
nova concepção, que de forma assertiva dispõe concretamente sobre a dualidade
do riso.
Em termos práticos, dispõe que o riso
se revela em dois campos distintos, num sentido temos o corpo humano, e junto
com ele, como presente dos Deuses, o riso, e, no outro, a concepção do homem
como ser racional, e a outra forma do riso, produto desta racionalidade.
Assim, a primeira forma de
manifestação do riso, vem da criação do homem, ou seja, provem da natureza, da
sua essência natural, nesta o riso tem a ver com o gozo natural, com a
perfeição física, e neste sentido se torna sublime, imenso, exprimindo
primordialmente o sentir humano como atributo divino.
Neste sentir, o riso é uma das poucas
coisas que já vieram perfeitas no homem, em suma era (e é)a visão do criador –
de (os) Deus (es) -, um presente que não deveria ser maculado, pois
continha em si, neste aspecto, o que foi posteriormente retratado como imagem e
semelhança.
Fazendo um paralelo, para melhor
compreensão do tema, e trazendo esta visão pretérita a acontecimentos recentes,
e que são objeto de instantânea divulgação nas mídias sociais pelo seu impacto,
poderemos ver e sentir a imensa força desta manifestação, humana.
Quando pessoas que nunca escutaram
algum som ouvem pela primeira vez, ou que nunca enxergaram e veem a luz, as
cores, e com isso sentem, de forma diferenciada, a dimensão do espaço. Aí, em
todas as vezes, brota do fundo do seu ser um riso espontâneo, de felicidade
pura, que por sua intensidade pode ser sentido por todos, no contexto e na
realidade do fato.
É sobre este riso que o segundo livro
da poética de Aristóteles inicialmente se debruça, do riso enquanto
manifestação do prazer físico dos sentidos, em sua interação com a natureza,
como fruto de um acontecimento natural, da chuva após um longo período de seca,
do nascimento dos filhos, da festa, e neste sentido é sublime.
Na realidade, esta primeira parte é que, pelo seu
potencial libertador, é que foi censurada através dos séculos.
A extensão desta ideia, tornava o
homem e seu corpo parte incindível da essência de Deus e, nesta percepção, sua
profanação seria um crime contra Ele, e sua proteção e cuidados nossa
manifestação de fé e respeito ao criador.
Delinearemos com minúcias este ponto
após a explicitação geral deste seccionamento da teoria do riso.
Assim, inicialmente compreendido o
riso como fruto divino, presente dado aos homens, passou este, imediatamente,
por sua excepcionalidade concreta e possível racionalização, a ser objeto de
estudo e desejo, dos homens, de todos os homens, em todos os tempos, quais
pequenos demiurgos, brincando de Deus para replicar sua obra perfeita.
Deste modo, a segunda parte da
poética, após estas considerações iniciais, trata do riso como fruto da
racionalidade humana, e o compreende, estritamente, dentro da Comédia, pois
resultado de uma cópia risível do ser, humano, travestido de Deus.
Neste capítulo, temos o riso
fabricado pela mente humana, o riso enquanto comédia, o riso como subproduto
imperfeito da razão – e, este é o riso (transformado pelas mãos e mentes
humanas, e encarcerado por elas) que, posteriormente, foi moldado,
julgado e condenado por filósofos, que em sua arrogância e soberba, nublados
pelos seus interesses, incluíram a parte divina em seu julgamento.
Como fruto imperfeito que busca no
humano racionalizável sua alegria natural de existir, jamais poderiam ver
reconhecida nessa manifestação algo mais além da conformação da natureza humana
através da razão. Assim, o potencial destruidor de tudo que trouxesse
sofrimento e dor ao homem, ao invés do riso, concretamente não ameaçava a ideia
de Deus, mas a imperfeição das convenções humanas, racionalizáveis.
Isso explica porque, no decorrer dos
anos, nem a Igreja, nem as instituições, que sempre se construíram pela força e
pela racionalidade do poder, jamais deixaram que esta Poética tivesse seu
conteúdo divulgado, pois a concepção do riso nela insculpida somente
teria seu desiderato no conforto e na proteção do homem e sua natureza.
Trava-se desde então, um contínuo
julgamento que, invariavelmente -, em face das provas ocultadas (extraviadas,
destruídas) – somente se atém a concepções que não ameacem nem a Igreja
nem a construção sobre as quais se erigiram os pilares da atual civilização
ocidental – ideias feitas em desserviço do homem e não em sua
emancipação.
Compreende-se, agora, através
destes novos escritos, que, por conta dos homens, filósofos, literatos, cultos,
através dos séculos – sistematicamente se condenou ou referenciou o riso como
intrinsecamente relacionado a razão humana – o homem é o único animal que ri -,
e dai se extrai, parte de sua racionalidade.
Neste ponto, consoante os novos
termos, abrem-se novos horizontes, pois o riso passa a ser compreendido
em sua forma dúplice, em parte pode ser concebido como forma de intervenção
divina em seu existir humano e, de outra parte, como construção humana,
decorrente do uso de sua racionalidade.
A aceitação desta origem dúplice do
riso, tendo como parte essência divina, consistente nesta sensação que engloba
todo o corpo físico, harmonia, êxtase e sublimação, era, e é demasiado humana e
subversiva, pois tira o foco exclusivo da fé e do espírito e o estende ao corpo
humano.
Compreende-se nesta breve exposição,
o fato do riso, considerado em sua pureza como originário dos sentidos, nunca
ter sido diferenciado em sua essência, de suas outras formas de manifestação,
de sempre ter sido colocado em seu conceito, como tendo forma una, como
atributo da razão. Deve-se tal conformação fática, à circunstância que o riso,
ao ter definida sua origem unicamente como decorrente do uso da razão,
teve automaticamente excluída sua vertente espiritual, bem como as
consequências advindas deste componente divino em sua intrínseca natureza.
Tal concepção dúplice, resultaria em
impossível conciliação com o martírio a que submetiam homens e mulheres, em
nome de Deus, pois, tal diferenciação importava em situar num só corpo,
atributos ao mesmo tempo divinos e humanos, seres criados a imagem e
semelhança.
Estaria em conformidade com o
pensamento que apregoa que nada do que é humano pode, em essência, ser
ruim, nem riso, nem amor, nem sexo, êxtase ou emoção.
A grande questão sobre esta vertente
universal do riso, que advém da atração, do prazer natural das coisas da
natureza, o riso espontâneo de maravilhamento perante o mundo, é que isto
é demasiado Deus em nós.
Desta forma, se tal concepção
encontra-se inescapavelmente jungida ao nosso corpo humano, este merece
ser resguardado sob todas as formas e modos, pois em sua origem a mão
divina que nos criou.
De outro lado temos a vertente que
coloca toda a discussão no patamar da razão, todo o prazer (que provoca a
sensação do riso) provém de motivações racionalizáveis elaboradas em conformidade
com a naturalidade – física – do corpo, e assim situa o riso e a percepção de
Deus na esfera da espiritualidade e não no corpo (mero instrumento). Esta forma
de pensamento, ainda, tem um componente excepcional – no caso, como
manifestação da racionalidade – humana -, traz em sua origem a capacidade de
ser burlada.
Em suma – a razão deturpou o riso –
pois se permitiu reproduzir este prazer – de tantas formas – que a farsa se
tornou possível – e assim se criou a comédia – não o riso.
E, os filósofos, em seus tratados,
por seu distanciamento com o prazer físico (natural), não explicitaram
sua essência e nem o diferenciaram (da comédia) – e, para torna-la imensa (como
fruto do pensamento racionalizado) – usurparam ao riso, advindo da naturalidade
das pessoas, sua origem divina, e o incorporaram, à força, aos escritos em que
tornavam todo o ato humano passível de riso, como racionalizável,
submetendo-o ao jugo da razão.
Ao fazer a distinção, muito antes da
religião cristã, Aristóteles, sem tais condicionantes, projetou seus
pensamentos, como alerta aos que viriam, anteviu o futuro, e ao prevê-lo
alertou as novas gerações sobre o significado das sensações e das palavras, e a
forma como apareceriam e interfeririam na vida real.
A considerar os escritos de
Aristóteles em sua relação com os ensinamentos cristãos haveria uma nova
interpretação, pois o riso humano não é questão de fé, ele existiria como
manifestação concreta da divindade e caberia ao homem apenas reconhecê-lo, em
si e nos outros e aprender com isso.
Entretanto, em outro campo, o
da razão, o riso – manifestação divina através de nosso corpo humano -, pode
ser reproduzido, como farsa ou busca da perfeição, através da comédia.
Reside, nestas intervenções do homem
– simulacro de Deus -, a forma imperfeita, posto que humana.
Mesmo a dedicação à espiritualidade
também não é perfeita, assim como o riso quando restrito a razão humana e não a
criação divina, o homem não pode criar os sentidos, apenas dispor deles, nem
criar Deus, apenas se unir a ele.
E, quanta
pretensão, dos que, ao mesmo tempo que exaltam a razão como forma de nos
assemelharmos a Deus, condenam o riso natural como traço de inferioridade, sem
ao menos suspeitarem que este, escrito na linguagem incompreendida de Deus,
inacessível a tais doutores, é entendida perfeitamente pelos simples, a quem
foi dado apenas sorver o aroma natural, tocar, ouvir, provar, ver, e
sentir.
Apontamentos …
Trata-se de obra de ficção, não
guardando estrita conformidade com as anotações nela insertas.
Demiurgo – No pensamento cosmogônico
de Platão, o termo designa o artesão divino – causa da alma do mundo – que, sem
criar de fato o universo, dá forma a uma matéria desorganizada imitando as
essências eternas, tendo os deuses inferiores, criados por ele, como tarefa a
produção dos seres mortais. Wikipédia
O PROBLEMA DO RISO EM O NOME
DA ROSA, DE UMBERTO ECO. Título- The laugh trouble in The name of the rose, by
Umberto Eco – Paulo de Góes[a] Doutor em Filosofia pela Unicamp e professor
titular da Universidade de Sorocaba. Sorocaba,SP – Brasil,e-mail:
lipa@splicenet.com.br
Na obra, especialmente as duas
tendências são confrontadas. Uma é a que tem como representante o velho monge e
bibliotecário Jorge de Burgos, que define o riso como fonte de dúvida e defende
que o mesmo não deve ser livremente permitido como meio para afrontar a
adversidade do dia-a-dia, visto que pode ser usado como arma para desacreditar
a própria Igreja. Essa tendência é seguida pelos monges que integravam a abadia
onde as cenas do romance se desenvolvem. A justificativa teológica (mas não
lógica) é a de que o riso mata o temor e isso, por sua vez, impede a fé. Outra
é a abordagem fundamentada em Aristóteles e seus comentadores, que teve, ao
longo da história, desdobramentos diversos. Essa tendência é representada, no
romance, por Guilherme de Baskerville, o arguto franciscano que encara o riso
como pertencente à essência do homem, sinal da racionalidade do humano e
instrumento para se lidar com as vicissitudes da vida.
Resumo
Umberto Eco, em seu conhecido romance
O nome da Rosa, explora a questão referente ao riso, reproduzindo uma velha
discussão histórica e filosófica que se reporta ao segundo livro da Poética, de
Aristóteles, considerado perdido, no qual o filósofo, ao tratar da comédia, faz
uma apologia do riso e suas virtudes. Duas tendências são confrontadas: uma,
que tem como representante o velho monge e bibliotecário Jorge de Burgos, que
define o riso como fonte de dúvida e defende que ele não deve ser livremente
permitido como meio para afrontar a adversidade do dia-a-dia, e outra,
representada por Guilherme de Baskerville, fundamentada em Aristóteles e seus
comentadores que consideravam o riso como “próprio do homem”, sinal da
racionalidade humana. Este artigo tem como objetivo explorar a duas tendências,
percorrendo, de modo ligeiro, as páginas do romance, inserindo digressões de
ordem histórica e filosófica.
….O Nome da Rosa, Umberto
Eco.