quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Cartas Filosóficas nº 29








CARTA A QUÉM SE QUER
Nº 29
M

E ACOMETE subitamente uma reflexão que a justa indignação não me permite guardá-la só para mim.

É sobre o quão me é difícil progredir no caminho da verdade e da retidão ética numa terra em que a virtude parece agonizar nos cativeiros escuros de uma moral putrificada e carcomida pelos vermes da corrupção de todo tipo, e, que parece ser da natureza dos homens desse tempo, quando não acredito ser da natureza humana tal mal.

Que mal é este que afeta a todos em todo lugar e que parece brotar e se espalhar como uma epidemia matando primeiro os valores mais humanos?

Neste meio sinto-me como se caminhasse descalço por entre espinhos ponteagudos que expelem o veneno da desonestidade e da injustiça, como cicuta que envenena antes o corpo que a alma dos justos.

Destilar tal veneno parece ter se tornado regra geral dessa sociedade anímica de valores fortes e perenes...

E sigo estropiado procurando apoiar-me quase que só com as pontas dos pés, nos raros espaços limpos onde ainda há um clarão de valores como a ética e a justiça em que possa me apoiar para que me oriente nesta caminhada árdua e inglória.  

Inevitavelmente me entrego às comparações que talvez não devesse fazer e a conclusões por isso mesmo, temerosas.

Indago-me a cada perfuração que sofro dos espinhos da injustiça, lançados contra mim a todo tempo, por mãos e mentes insanas que sequer se condoem com suas maldades, antes pelo contrário, se vangloriam de tê-las cometido contra quem em nome do bem, da sinceridade, da justiça e da crença na bondade humana, não se postou a revidar seus ataques. – Pobres homens covardes, se escondem do medo da verdade e da justiça, na proteção infame da mentira e da injuria!

 Sinto esvaziar minha fé, neste homem, nesta sociedade e em quem os criou!  

Meus questionamentos não cessam de me perturbar e indagar-me sobre o que há no coração humano que o faz desumano. Se minhas reflexões não me curam, ao menos, me servem de paliativos para aliviar minha dor.

Parece que não sou daqui, parece que não sou desse tempo, parece que não sou desse mundo, sinto-me um estranho, parece que me fiz só e dissonante de tudo isso.

Mas, pode alguém se fazer a si próprio, sozinho? Pode alguém construir por si só o que lhe é imprescindível para que seja um sujeito?

Em verdade não sei dizer. Se olhar para minha trajetória neste mundo nauseante, confesso que sou tentado a dizer que sim.

O que precisa um indivíduo para se fazer um ser ético nesta sociedade?  Família? – não a tive! Foi preciso que eu mesmo construísse uma para me sentir parte de alguma e me fazer um ser social.

E o que precisa um indivíduo para se fazer mais humano? Educação? – não a tive! Foi preciso que eu mesmo me educasse nas letras, nas leis, nas artes, na filosofia em fim para me tornar um sujeito com alguma consciência crítica desse mundo e de mim mesmo. Foi preciso que eu mesmo me educasse para que a educação me transformasse em sujeito, ainda que torto em meus pensamentos.

Amigos? Nunca os tive, pelo menos no sentido de amizade que entendo e no grau de verdade e pureza de sentimentos que dedico àqueles que tenho amizade, e que esse conceito exige e que faço questão de honrá-lo em seu sentido mais restrito. - São meus amigos apenas os livros, pois, esses dizem o que pensam e não me querem mal.

E a Filosofia, que não me deixa sofrer do mal da ignorância perene, pois ela é para mim, sempre a possibilidade do esclarecimento e da consciência, necessários para que eu continue nesta trajetória de caminhos tortuosos, mas sobre a trilha da retidão e da fé na bondade humana. Creio sim! Mas com um grau de frustração, talvez vinda da incompreensão de tanta dificuldade e dor no coração de quem traz em si a ingenuidade da compaixão pelo ser humano e a decepção com os homens desse tempo.

O que resta então ao indivíduo para que se faça ético e por isso humano, neste mundo de seres cada vez mais desumanos?

Que tenha uma profissão e renda? Posso dizer que tenho alguns ofícios, nenhuma renda, mas por escolha própria. Não escolhi o caminho dos vendilhões do templo, dos mercadores de si mesmos que vendem primeiro suas almas, seus corpos, sua dignidade, sua liberdade e por fim sua felicidade ao dinheiro para poder obtê-lo cada vez mais. Não! Decidi dedicar-me à filosofia, o único meio que acredito ser possível realizar a existência humana neste mundo de paradoxos.

Pago o preço de minha escolha eu sei, todo o resto é para mim, apenas passar o tempo de vida enquanto permaneço nesta existência. E se é para passar o tempo enquanto vivo, que eu não o passe acorrentado nos grilhões deste mundo de corrupções e de sombras feito a caverna de Platão. 

Mas sei que até a filosofia carece de um meio para se fazer pródiga, e este meio não é outro senão, a educação e tudo aquilo que advém dessa prática.

Foram então, esses os motivos de minha escolha de vida que na verdade é a conseqüência do do ser que sou e motivo de toda crítica e pressão, agressões e afastamentos por parte daqueles que julgava serem meus amigos, mas, que me destinaram todo desprezo e aviltamentos, talvez por não compreenderem minhas escolhas.

Não percebem que substituem os meios pelos fins, os objetos pelas pessoas, as coisas pela essência, a servidão pela liberdade, o dinheiro pela felicidade, e não raramente, se iludem, pensam estar vivendo e aproveitando a vida quando muito, estão mesmo é passando pela terra acorrentados nos grilhões da miséria humana que é a ignorância de tomar o falso pelo verdadeiro e, constroem suas vidas como os engenheiros constroem prédios, colocam um andar sobre o outro e sobre outro e outro, numa verticalização insana como se tentassem atingir os céus e tocar o dedo de Deus, sem saberem que erguem as paredes do próprio presídio, decoram suas fachadas com os mais belos afrescos e mais caras pedras de carrara e, quando estão nas alturas percebem que todo o edifício construído está fundado sobre o terreno arenoso das intempéries do dinheiro e da efemeridade dos objetos e, ao primeiro movimento negativo de suas contas bancárias, todo o edifício desaba como as torres gêmeas (1). 
Substituem a felicidade pela satisfação, o sentir pelo prazer, a necessidade pela vaidade, o amor pelo poder. Sequer, parecem refletir sobre o para quê estamos no mundo? Pois como nos diz Sócrates: uma vida sem reflexão não é digna de ser vivida. E eu digo e sei que Sócrates assim procedia; que nenhuma reflexão dignifica a vida se não for para ensinar a viver bem.

Não sou um ser feito, por que não sei como me fazer a mim mesmo, mas fiz a escolha de minha morada; no terreno dos sentimentos calcei, penso, com as pedras da verdade, da justiça, da ética e da compaixão a base do que quero edificar.

Sei que cada escolha traz consigo uma renúncia e cada renúncia tem seu preço. Pago o valor da escolha no preço da renúncia; 

O valor é me tornar mais humano; o preço é sofrer as desumanidades daqueles que me julgam pelo que fazem.

O valor é querer e ser ético; o preço é ser aviltado, o valor é tentar ser justo; o preço é ser injustiçado, o valor é ser livre, o preço é ser vilipendiado.

Contudo, ainda assim sigo reto na direção daquilo que me move; a crença de que há em cada um, a semente do bem, não na sociedade e na moral, mas na humanidade e no coração.



Maio/2007