ENTENDA SE ESTAMOS EM UM
GOLPE DE ESTADO OU NÃO.
Republíco dois vídeos e três textos
filosóficos analisando a Democracia no Brasil.
Assista-os, leia os textos e se
informe criticamente.
MARILENA CHAUÍ, principal Filósofa Brasileira autora de diversos livros inclusive para o Ensino Médio como: "Convite à Filosofia" Ed. Ática.
(Texto 1/4)
A sociedade Democrática:
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Vimos que uma ideologia não nasce do
nada, nem repousa no vazio, mas exprime, de maneira invertida, dissimulada e
imaginária, a praxis social e histórica concretas. Isso se aplica à ideologia
democrática. Em outras palavras, há, na prática democrática e nas idéias
democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que
a ideologia democrática percebe e deixa perceber. Que significam as eleições?
Muito mais do que a mera rotatividade de governos ou a alternância no poder.
Simbolizam o essencial da democracia: que o poder não se identifica com os
ocupantes do governo, não lhes pertence, mas é sempre um lugar vazio, que os
cidadãos, periodicamente, preenchem com um representante, podendo revogar seu
mandato se não cumprir o que lhe foi delegado para representar. As idéias de
situação e oposição, maioria e minoria, cujas vontades devem ser respeitadas e
garantidas pela lei, vão muito além dessa aparência. Significam que a sociedade
não é uma comunidade una e indivisa voltada para o bem comum obtido por
consenso, mas, ao contrário, que está internamente dividida e que as divisões
são legítimas e devem expressar-se publicamente. A democracia é a única forma
política que considera o conflito legítimo e legal, permitindo que seja
trabalhado politicamente pela própria sociedade. As idéias de igualdade e
liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação
jurídica formal. Significam que os cidadãos são sujeitos de direitos e que,
onde tais direitos não existam nem estejam garantidos, tem-se o direito de
lutar por eles e exigi-los. É esse o cerne da democracia. Um direito difere de
uma necessidade ou carência e de um interesse. Uma necessidade ou carência é
algo particular e específico. Alguém pode ter necessidade de água, outro, de
comida. Um grupo social pode ter carência de transportes, outro, de hospitais.
Há tantas necessidades quanto indivíduos, tantas carências quanto grupos
sociais. Um interesse também é algo particular e específico. Os interesses dos
estudantes brasileiros podem ser diferentes dos interesses dos estudantes
argentinos. Os interesses dos agricultores podem ser diferentes dos interesses
dos comerciantes. Os interesses dos bancários, diferentes dos interesses dos
banqueiros. Os interesses dos índios, diferentes dos interesses dos
garimpeiros. Necessidades ou carências podem ser conflitantes. Suponhamos que,
por exemplo, numa região de uma grande cidade, as mulheres trabalhadoras tenham
necessidade ou carência de creches para seus filhos e que, na mesma região, um
outro grupo social, favelado, tenha carência de moradia. O governo municipal
dispõe de recursos para atender a uma das carências, mas não a ambas, de sorte
que resolver uma significará abandonar a outra. Interesses também podem ser
conflitantes. Suponhamos, por exemplo, que interesse a grandes proprietários de
terra deixá-las inativas esperando a valorização imobiliária, mas que interesse
a trabalhadores rurais sem terra o cultivo de alimentos para a sobrevivência;
temos aí um conflito de interesses. Suponhamos que interesse aos proprietários
de empresas comerciais estabelecer um horário de trabalho que aumente as
vendas, mas que interesse aos comerciários um outro horário, no qual possam
dispor de horas para estudar, cuidar da família e descansar. Temos aqui um
outro conflito de interesses. Um direito, ao contrário de necessidades,
carências e interesses, não é particular e específico, mas geral e universal,
válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais. Assim, por exemplo,
a carência de água e de comida manifesta algo mais profundo: o direito à vida.
A carência de moradia ou de transporte também manifesta algo mais profundo: o
direito a boas condições de vida. O interesse dos estudantes, o direito à
educação e à informação. O interesse dos sem-terra, o direito ao trabalho. O
dos comerciários, o direito a boas condições de trabalho. Dizemos que uma
sociedade – e não um simples regime de governo – é democrática, quando, além de
eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à
vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição
do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos.
(Texto 2/4)
A CRIAÇÃO DE DIREITOS:
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Quando a democracia foi inventada pelos
atenienses, criou-se a tradição democrática como instituição de três direitos
fundamentais que definiam o cidadão: igualdade, liberdade e participação no
poder. Igualdade significava: perante as leis e os costumes da polis, todos os
cidadãos possuem os mesmos direitos e devem ser tratados da mesma maneira. Por
esse motivo, Aristóteles afirmava que a primeira tarefa da justiça era igualar
os desiguais, seja pela redistribuição da riqueza social, seja pela garantia de
participação no governo. Também pelo mesmo motivo, Marx afirmava que a
igualdade só se tornaria um direito concreto quando não houvesse escravos,
servos e assalariados explorados, mas fosse dado a cada um segundo suas
necessidades e segundo seu trabalho. A observação de Aristóteles e, depois, a
de Marx indicam algo preciso: a mera declaração do direito à igualdade não faz
existir os iguais, mas abre o campo para a criação da igualdade, através das
exigências e demandas dos sujeitos sociais. Em outras palavras, declarado o
direito à igualdade, a sociedade pode instituir formas de reivindicação para
criá-lo como direito real. Liberdade significava: todo cidadão tem o direito de
expor em público seus interesses e suas opiniões, vê-los debatidos pelos demais
e aprovados ou rejeitados pela maioria, devendo acatar a decisão tomada
publicamente. Na modernidade, com a Revolução Inglesa de 1644 e a Revolução
Francesa de 1789, o direito à liberdade ampliou-se. Além da liberdade de
pensamento e de expressão, passou a significar o direito à independência para
escolher o ofício, o local de moradia, o tipo de educação, o cônjuge, em suma,
a recusa das hierarquias fixas, supostamente divinas ou naturais.
Acrescentou-se, em 1789, um direito de enorme importância, qual seja, o de que
todo indivíduo é inocente até prova em contrário, que a prova deve ser
estabelecida perante um tribunal e que a liberação ou punição devem ser dadas
segundo a lei. Com os movimentos socialistas, a luta social por liberdade
ampliou ainda mais esse direito, acrescentando-lhe o direito de lutar contra
todas as formas de tirania, censura e tortura e contra todas as formas de exploração
e dominação social, econômica, cultural e política. Observamos aqui o mesmo que
na igualdade: a simples declaração do direito à liberdade não a institui
concretamente, mas abre o campo histórico para a criação desse direito pela
práxis humana. Participação no poder significava: todos os cidadãos têm o
direito de participar das discussões e deliberações públicas da polis, votando
ou revogando decisões. Esse direito possuía um significado muito preciso. Nele
afirmava-se que, do ponto de vista político, todos os cidadãos têm competência
para opinar e decidir, pois a política não é uma questão técnica (eficácia
administrativa e militar) nem científica (conhecimentos especializados sobre
administração e guerra), mas ação coletiva, isto é, decisão coletiva quanto aos
interesses e direitos da própria polis. A democracia ateniense, como se vê, era
direta. A moderna, porém, é representativa. O direito à participação tornou-se,
portanto, indireto, através da escolha de representantes. Ao contrário dos
outros dois direitos, este último parece ter sofrido diminuição em lugar de
ampliação. Essa aparência é falsa e verdadeira. Falsa, porque a democracia
moderna foi instituída na luta contra o Antigo Regime e, portanto, em relação a
esse último, ampliou a participação dos cidadãos no poder, ainda que sob a
forma da representação. Verdadeira, porque, como vimos, a república liberal
tendeu a limitar os direitos políticos aos proprietários privados dos meios de
produção e aos profissionais liberais da classe média, aos homens adultos
“independentes”. Todavia, as lutas socialistas e populares forçaram a ampliação
dos direitos políticos com a criação do sufrágio universal (todos são cidadãos
eleitores: homens, mulheres, jovens, negros, analfabetos, trabalhadores,
índios) e a garantia da elegibilidade de qualquer um que, não estando sob
suspeita de crime, se apresente a um cargo eletivo. Vemos aqui, portanto, o
mesmo que nos direitos anteriores: lutas sociais que transformam a simples
declaração de um direito em direito real, ou seja, vemos aqui a criação de um
direito. As lutas por igualdade e liberdade ampliaram os direitos políticos
(civis) e, a partir destes, criaram os direitos sociais – trabalho, moradia,
saúde, transporte, educação, lazer, cultura -, os direitos das chamadas
“minorias”i – mulheres, idosos, negros, homossexuais, crianças, índios – e o
direito à segurança planetária – as lutas ecológicas e contra as armas
nucleares. As lutas populares por participação política ampliaram os direitos
civis: direito de opor-se à tirania, à censura, à tortura, direito de
fiscalizar o Estado por meio de organizações da sociedade (associações,
sindicatos, partidos políticos); direito à informação pela publicidade das
decisões estatais. A sociedade democrática institui direitos pela abertura do
campo social à criação de direitos reais, à ampliação de direitos existentes e
à criação de novos direitos. Com isso, dois traços distinguem a democracia de
todas as outras formas sociais e políticas: 1. a democracia é a única sociedade
e o único regime político que considera o conflito legítimo. Não só trabalha
politicamente os conflitos de necessidade e de interesses (disputas entre os
partidos políticos e eleições de governantes pertencentes a partidos opostos),
mas procura instituí-los como direitos e, como tais, exige que sejam
reconhecidos e respeitados. Mais do que isso. Na sociedade democrática,
indivíduos e grupos organizam-se em associações, movimentos sociais e
populares, classes se organizam em sindicatos e partidos, criando um contra-poder
social que, direta ou indiretamente, limita o poder do Estado; 2. a democracia
é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível,
às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela
existência dos contra-poderes sociais, a sociedade democrática não está fixada
numa forma para sempre determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas
divisões e diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade objetiva (a
liberdade) e de alterar-se pela própria praxis.
(Texto 3/4)
OS OBSTÁCULOS À DEMOCRACIA:
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Liberdade, igualdade e participação
conduziriam à célebre formulação da política democrática como “governo do povo,
pelo povo e para o povo”. Entretanto, o povo d foi feita a partir de uma
divisão social nova: a separação entre dirigentes e executantes. Os primeiros
são os que recebem a educação científica e tecnológica, são considerados
portadores de saberes que os tornam competentes e por isso com poder de mando.
Os executantes são aqueles que não possuem conhecimentos tecnológicos e
científicos, mas sabem apenas executar tarefas, sem conhecer as razões e as
finalidades de sua ação. São por isso considerados incompetentes e destinados a
obedecer. Essa forma de organização da divisão social do trabalho propagou-se
para a sociedade inteira. No comércio, na agricultura, nas escolas, nos
hospitais, nas universidades, nos serviços públicos, nas artes, todos estão
separados entre “competentes” que sabem e “incompetentes” que executam. Em
outras palavras, a posse de certos conhecimentos específicos tornou-se um poder
para mandar e decidir. Essa divisão social converteu-se numa ideologia: a
ideologia da competência técnico-científica, isto é, na idéia de que quem
possui conhecimentos está naturalmente dotado de poder de mando e direção. Essa
ideologia, fortalecida pelos meios de comunicação de massa que a estimula
diariamente, invadiu a política: esta passou a ser considerada uma atividade
reservada para administradores políticos competentes e não uma ação coletiva de
todos os cidadãos. Não só o direito à representação política (ser
representante) diminui porque se restringe aos competentes, como ainda a
ideologia da competência oculta e dissimula o fato de que, para ser
“competente”, é preciso ter recursos econômicos para estudar e adquirir
conhecimentos. Em outras palavras, os “competentes” pertencem à classe
economicamente dominante, que, assim, dirige a política segundo seus interesses
e não de acordo com a universalidade dos direitos. Um outro obstáculo ao
direito à participação política é posto pelos meios de comunicação de massa. Só
podemos participar de discussões e decisões políticas se possuirmos informações
corretas sobre aquilo que vamos discutir e decidir. Ora, como já vimos, os
meios de comunicação de massa não informam, desinformam. Ou melhor, transmitem
as informações de acordo com os interesses de seus proprietários e das alianças
econômicas e políticas destes com grupos detentores de poder econômico e
político. Assim, por não haver respeito ao direito de informação, não há como
respeitar o direito à verdadeira participação política. Os obstáculos à
democracia não inviabilizam a sociedade democrática. Pelo contrário. Somente
nela somos capazes de perceber tais obstáculos e lutar contra eles.
(Texto 4/4)
DIFICULDADES PARA A DEMOCRACIA NO
BRASIL:
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Periodicamente os brasileiros afirmam que
vivemos numa democracia, depois de concluída uma fase de autoritarismo. Por
democracia entendem a existência de eleições, de partidos políticos e da
divisão republicana dos três poderes, além da liberdade de pensamento e de
expressão. Por autoritarismo, entendem um regime de governo em que o Estado é
ocupado através de um golpe (em geral militar ou com apoio militar), não há
eleições nem partidos políticos, o poder executivo domina o legislativo e o judiciário,
há censura do pensamento e da expressão (por vezes com tortura e morte) dos
inimigos políticos. Em suma, democracia e autoritarismo são vistos como algo
que se realiza na esfera do Estado e este é identificado com o modo de governo.
Essa visão é cega para algo profundo na sociedade brasileira: o autoritarismo
social. Nossa sociedade é autoritária porque é hierárquica, pois divide as
pessoas, em qualquer circunstância, em inferiores, que devem obedecer, e
superiores, que devem mandar. Não há percepção nem prática da igualdade como um
direito. Nossa sociedade também é autoritária porque é violenta (nos termos em
que, no estudo da ética, definimos a violência): nela vigoram racismo,
machismo, discriminação religiosa e de classe social, desigualdades econômicas
das maiores do mundo, exclusões culturais e políticas. Não há percepção nem
prática do direito à liberdade. O autoritarismo social e as desigualdades
econômicas fazem com que a sociedade brasileira esteja polarizada entre as
carências das camadas populares e os interesses das classes abastadas e
dominantes, sem conseguir ultrapassar carências e interesses e alcançar a
esfera dos direitos. Os interesses, porque não se transformam em direitos,
tornam-se privilégios de alguns, de sorte que a polarização social se efetua
entre os despossuídos (os carentes) e os privilegiados. Estes, porque são
portadores dos conhecimentos técnicos e científicos, são os “competentes”,
cabendo-lhes a direção da sociedade. Como vimos, uma carência é sempre
específica, sem conseguir generalizar-se num interesse comum nem
universalizar-se num direito. Um privilégio, por definição, é sempre
particular, não podendo generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se
num direito, pois, se tal ocorresse, deixaria de ser privilégio. Ora, a
democracia é criação e garantia de direitos. Nossa sociedade, polarizada entre
a carência e o privilégio, não consegue ser democrática, pois não encontra
meios para isso. Esse conjunto de determinações sociais manifesta-se na esfera
política. Em lugar de democracia, temos instituições vindas dela, mas operando
de modo autoritário. Assim, por exemplo, os partidos políticos costumam ser de
três tipos: os clientelistas, que mantêm relações de favor com seus eleitores,
os vanguardistas, que substituem seus eleitores pela vontade dos dirigentes
partidários, e os populistas, que tratam seus eleitores como um pai de família
(o despotes) trata seus filhos menores. Favor, substituição e paternalismo
evidenciam que a prática da participação política, através de representantes,
não consegue se realizar no Brasil. Os representantes, em lugar de cumprir o
mandato que lhes foi dado pelos representados, surgem como chefes, mandantes,
detentores de favores e poderes, submetendo os representados, transformando-os
em clientes que recebem favores dos mandantes. A “indústria política” – isto é,
a criação da imagem dos políticos pelos meios de comunicação de massa para a
venda do político aos eleitores-consumidores -, aliada à estrutura social do
país, alimenta um imaginário político autoritário. As lideranças políticas são
sempre imaginadas como chefes salvadores da nação, verdadeiros messias
escolhidos por Deus e referendados pelo voto dos eleitores. Na verdade, não
somos realmente eleitores (os que escolhem), mas meros votantes (os que dão o
voto para alguém). A imagem populista e messiânica dos governantes indica que a
concepção teocrática do poder não desapareceu: ainda se acredita no governante
como enviado das divindades (o número de políticos ligados a astrólogos e
videntes fala por si mesmo) e que sua vontade tem força de lei. As leis, porque
exprimem ou os privilégios dos poderosos ou a vontade pessoal dos governantes,
não são vistas como expressão de direitos nem de vontades e decisões públicas
coletivas. O poder judiciário aparece como misterioso, envolto num saber
incompreensível e numa autoridade quase mística. Por isso mesmo, aceita-se que
a legalidade seja, por um lado, incompreensível, e, por outro, ineficiente (a
impunidade não reina livre e solta?) e que a única relação possível com ela
seja a da transgressão (o famoso “jeitinho”). Como se observa, a democracia, no
Brasil, ainda está por ser inventada.
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i Parece estranho falar em “minoria”
para referir-se a mulheres, negros, idosos, crianças, pois quantitativamente
formam a maioria. É que a palavra minoria não é usada em sentido quantitativo,
mas qualitativo. Quando o pensamento político liberal definiu os que teriam
direito à cidadania, usou como critério a idéia de maioridade racional: seriam
cidadãos aqueles que houvessem alcançado o pleno uso da razão. Alcançaram o
pleno uso da razão ou a maioridade racional os que são independentes, isto é,
não dependem de outros para viver. São independentes os proprietários privados
dos meios de produção e os profissionais liberais. São dependentes e, portanto,
em estado de minoridade racional: as mulheres, as crianças, os adolescentes, os
trabalhadores e os “selvagens primitivos” (africanos e índios). Formam a
minoria. Como há outros grupos cujos direitos não são reconhecidos (por
exemplo, os homossexuais), fala-se em “minorias”. A “maioridade” liberal
refere-se, pois, ao homem adulto branco proprietário ou profissional liberal.