segunda-feira, 25 de abril de 2016

Marilena Chaui - Golpe ou Não?





  ENTENDA SE ESTAMOS EM UM GOLPE DE ESTADO OU NÃO.
Republíco dois vídeos e três textos filosóficos analisando a Democracia no Brasil.
Assista-os, leia os textos e se informe criticamente.
MARILENA CHAUÍ, principal Filósofa Brasileira autora de diversos livros inclusive para o Ensino Médio como: "Convite à Filosofia" Ed. Ática.

(Texto 1/4)
A sociedade Democrática:
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Vimos que uma ideologia não nasce do nada, nem repousa no vazio, mas exprime, de maneira invertida, dissimulada e imaginária, a praxis social e histórica concretas. Isso se aplica à ideologia democrática. Em outras palavras, há, na prática democrática e nas idéias democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que a ideologia democrática percebe e deixa perceber. Que significam as eleições? Muito mais do que a mera rotatividade de governos ou a alternância no poder. Simbolizam o essencial da democracia: que o poder não se identifica com os ocupantes do governo, não lhes pertence, mas é sempre um lugar vazio, que os cidadãos, periodicamente, preenchem com um representante, podendo revogar seu mandato se não cumprir o que lhe foi delegado para representar. As idéias de situação e oposição, maioria e minoria, cujas vontades devem ser respeitadas e garantidas pela lei, vão muito além dessa aparência. Significam que a sociedade não é uma comunidade una e indivisa voltada para o bem comum obtido por consenso, mas, ao contrário, que está internamente dividida e que as divisões são legítimas e devem expressar-se publicamente. A democracia é a única forma política que considera o conflito legítimo e legal, permitindo que seja trabalhado politicamente pela própria sociedade. As idéias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação jurídica formal. Significam que os cidadãos são sujeitos de direitos e que, onde tais direitos não existam nem estejam garantidos, tem-se o direito de lutar por eles e exigi-los. É esse o cerne da democracia. Um direito difere de uma necessidade ou carência e de um interesse. Uma necessidade ou carência é algo particular e específico. Alguém pode ter necessidade de água, outro, de comida. Um grupo social pode ter carência de transportes, outro, de hospitais. Há tantas necessidades quanto indivíduos, tantas carências quanto grupos sociais. Um interesse também é algo particular e específico. Os interesses dos estudantes brasileiros podem ser diferentes dos interesses dos estudantes argentinos. Os interesses dos agricultores podem ser diferentes dos interesses dos comerciantes. Os interesses dos bancários, diferentes dos interesses dos banqueiros. Os interesses dos índios, diferentes dos interesses dos garimpeiros. Necessidades ou carências podem ser conflitantes. Suponhamos que, por exemplo, numa região de uma grande cidade, as mulheres trabalhadoras tenham necessidade ou carência de creches para seus filhos e que, na mesma região, um outro grupo social, favelado, tenha carência de moradia. O governo municipal dispõe de recursos para atender a uma das carências, mas não a ambas, de sorte que resolver uma significará abandonar a outra. Interesses também podem ser conflitantes. Suponhamos, por exemplo, que interesse a grandes proprietários de terra deixá-las inativas esperando a valorização imobiliária, mas que interesse a trabalhadores rurais sem terra o cultivo de alimentos para a sobrevivência; temos aí um conflito de interesses. Suponhamos que interesse aos proprietários de empresas comerciais estabelecer um horário de trabalho que aumente as vendas, mas que interesse aos comerciários um outro horário, no qual possam dispor de horas para estudar, cuidar da família e descansar. Temos aqui um outro conflito de interesses. Um direito, ao contrário de necessidades, carências e interesses, não é particular e específico, mas geral e universal, válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais. Assim, por exemplo, a carência de água e de comida manifesta algo mais profundo: o direito à vida. A carência de moradia ou de transporte também manifesta algo mais profundo: o direito a boas condições de vida. O interesse dos estudantes, o direito à educação e à informação. O interesse dos sem-terra, o direito ao trabalho. O dos comerciários, o direito a boas condições de trabalho. Dizemos que uma sociedade – e não um simples regime de governo – é democrática, quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos.

(Texto 2/4)
A CRIAÇÃO DE DIREITOS:
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 Quando a democracia foi inventada pelos atenienses, criou-se a tradição democrática como instituição de três direitos fundamentais que definiam o cidadão: igualdade, liberdade e participação no poder. Igualdade significava: perante as leis e os costumes da polis, todos os cidadãos possuem os mesmos direitos e devem ser tratados da mesma maneira. Por esse motivo, Aristóteles afirmava que a primeira tarefa da justiça era igualar os desiguais, seja pela redistribuição da riqueza social, seja pela garantia de participação no governo. Também pelo mesmo motivo, Marx afirmava que a igualdade só se tornaria um direito concreto quando não houvesse escravos, servos e assalariados explorados, mas fosse dado a cada um segundo suas necessidades e segundo seu trabalho. A observação de Aristóteles e, depois, a de Marx indicam algo preciso: a mera declaração do direito à igualdade não faz existir os iguais, mas abre o campo para a criação da igualdade, através das exigências e demandas dos sujeitos sociais. Em outras palavras, declarado o direito à igualdade, a sociedade pode instituir formas de reivindicação para criá-lo como direito real. Liberdade significava: todo cidadão tem o direito de expor em público seus interesses e suas opiniões, vê-los debatidos pelos demais e aprovados ou rejeitados pela maioria, devendo acatar a decisão tomada publicamente. Na modernidade, com a Revolução Inglesa de 1644 e a Revolução Francesa de 1789, o direito à liberdade ampliou-se. Além da liberdade de pensamento e de expressão, passou a significar o direito à independência para escolher o ofício, o local de moradia, o tipo de educação, o cônjuge, em suma, a recusa das hierarquias fixas, supostamente divinas ou naturais. Acrescentou-se, em 1789, um direito de enorme importância, qual seja, o de que todo indivíduo é inocente até prova em contrário, que a prova deve ser estabelecida perante um tribunal e que a liberação ou punição devem ser dadas segundo a lei. Com os movimentos socialistas, a luta social por liberdade ampliou ainda mais esse direito, acrescentando-lhe o direito de lutar contra todas as formas de tirania, censura e tortura e contra todas as formas de exploração e dominação social, econômica, cultural e política. Observamos aqui o mesmo que na igualdade: a simples declaração do direito à liberdade não a institui concretamente, mas abre o campo histórico para a criação desse direito pela práxis humana. Participação no poder significava: todos os cidadãos têm o direito de participar das discussões e deliberações públicas da polis, votando ou revogando decisões. Esse direito possuía um significado muito preciso. Nele afirmava-se que, do ponto de vista político, todos os cidadãos têm competência para opinar e decidir, pois a política não é uma questão técnica (eficácia administrativa e militar) nem científica (conhecimentos especializados sobre administração e guerra), mas ação coletiva, isto é, decisão coletiva quanto aos interesses e direitos da própria polis. A democracia ateniense, como se vê, era direta. A moderna, porém, é representativa. O direito à participação tornou-se, portanto, indireto, através da escolha de representantes. Ao contrário dos outros dois direitos, este último parece ter sofrido diminuição em lugar de ampliação. Essa aparência é falsa e verdadeira. Falsa, porque a democracia moderna foi instituída na luta contra o Antigo Regime e, portanto, em relação a esse último, ampliou a participação dos cidadãos no poder, ainda que sob a forma da representação. Verdadeira, porque, como vimos, a república liberal tendeu a limitar os direitos políticos aos proprietários privados dos meios de produção e aos profissionais liberais da classe média, aos homens adultos “independentes”. Todavia, as lutas socialistas e populares forçaram a ampliação dos direitos políticos com a criação do sufrágio universal (todos são cidadãos eleitores: homens, mulheres, jovens, negros, analfabetos, trabalhadores, índios) e a garantia da elegibilidade de qualquer um que, não estando sob suspeita de crime, se apresente a um cargo eletivo. Vemos aqui, portanto, o mesmo que nos direitos anteriores: lutas sociais que transformam a simples declaração de um direito em direito real, ou seja, vemos aqui a criação de um direito. As lutas por igualdade e liberdade ampliaram os direitos políticos (civis) e, a partir destes, criaram os direitos sociais – trabalho, moradia, saúde, transporte, educação, lazer, cultura -, os direitos das chamadas “minorias”i – mulheres, idosos, negros, homossexuais, crianças, índios – e o direito à segurança planetária – as lutas ecológicas e contra as armas nucleares. As lutas populares por participação política ampliaram os direitos civis: direito de opor-se à tirania, à censura, à tortura, direito de fiscalizar o Estado por meio de organizações da sociedade (associações, sindicatos, partidos políticos); direito à informação pela publicidade das decisões estatais. A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação de direitos reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos. Com isso, dois traços distinguem a democracia de todas as outras formas sociais e políticas: 1. a democracia é a única sociedade e o único regime político que considera o conflito legítimo. Não só trabalha politicamente os conflitos de necessidade e de interesses (disputas entre os partidos políticos e eleições de governantes pertencentes a partidos opostos), mas procura instituí-los como direitos e, como tais, exige que sejam reconhecidos e respeitados. Mais do que isso. Na sociedade democrática, indivíduos e grupos organizam-se em associações, movimentos sociais e populares, classes se organizam em sindicatos e partidos, criando um contra-poder social que, direta ou indiretamente, limita o poder do Estado; 2. a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade objetiva (a liberdade) e de alterar-se pela própria praxis.

(Texto 3/4)
 OS OBSTÁCULOS À DEMOCRACIA:
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 Liberdade, igualdade e participação conduziriam à célebre formulação da política democrática como “governo do povo, pelo povo e para o povo”. Entretanto, o povo d foi feita a partir de uma divisão social nova: a separação entre dirigentes e executantes. Os primeiros são os que recebem a educação científica e tecnológica, são considerados portadores de saberes que os tornam competentes e por isso com poder de mando. Os executantes são aqueles que não possuem conhecimentos tecnológicos e científicos, mas sabem apenas executar tarefas, sem conhecer as razões e as finalidades de sua ação. São por isso considerados incompetentes e destinados a obedecer. Essa forma de organização da divisão social do trabalho propagou-se para a sociedade inteira. No comércio, na agricultura, nas escolas, nos hospitais, nas universidades, nos serviços públicos, nas artes, todos estão separados entre “competentes” que sabem e “incompetentes” que executam. Em outras palavras, a posse de certos conhecimentos específicos tornou-se um poder para mandar e decidir. Essa divisão social converteu-se numa ideologia: a ideologia da competência técnico-científica, isto é, na idéia de que quem possui conhecimentos está naturalmente dotado de poder de mando e direção. Essa ideologia, fortalecida pelos meios de comunicação de massa que a estimula diariamente, invadiu a política: esta passou a ser considerada uma atividade reservada para administradores políticos competentes e não uma ação coletiva de todos os cidadãos. Não só o direito à representação política (ser representante) diminui porque se restringe aos competentes, como ainda a ideologia da competência oculta e dissimula o fato de que, para ser “competente”, é preciso ter recursos econômicos para estudar e adquirir conhecimentos. Em outras palavras, os “competentes” pertencem à classe economicamente dominante, que, assim, dirige a política segundo seus interesses e não de acordo com a universalidade dos direitos. Um outro obstáculo ao direito à participação política é posto pelos meios de comunicação de massa. Só podemos participar de discussões e decisões políticas se possuirmos informações corretas sobre aquilo que vamos discutir e decidir. Ora, como já vimos, os meios de comunicação de massa não informam, desinformam. Ou melhor, transmitem as informações de acordo com os interesses de seus proprietários e das alianças econômicas e políticas destes com grupos detentores de poder econômico e político. Assim, por não haver respeito ao direito de informação, não há como respeitar o direito à verdadeira participação política. Os obstáculos à democracia não inviabilizam a sociedade democrática. Pelo contrário. Somente nela somos capazes de perceber tais obstáculos e lutar contra eles.

(Texto 4/4)
DIFICULDADES PARA A DEMOCRACIA NO BRASIL:
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 Periodicamente os brasileiros afirmam que vivemos numa democracia, depois de concluída uma fase de autoritarismo. Por democracia entendem a existência de eleições, de partidos políticos e da divisão republicana dos três poderes, além da liberdade de pensamento e de expressão. Por autoritarismo, entendem um regime de governo em que o Estado é ocupado através de um golpe (em geral militar ou com apoio militar), não há eleições nem partidos políticos, o poder executivo domina o legislativo e o judiciário, há censura do pensamento e da expressão (por vezes com tortura e morte) dos inimigos políticos. Em suma, democracia e autoritarismo são vistos como algo que se realiza na esfera do Estado e este é identificado com o modo de governo. Essa visão é cega para algo profundo na sociedade brasileira: o autoritarismo social. Nossa sociedade é autoritária porque é hierárquica, pois divide as pessoas, em qualquer circunstância, em inferiores, que devem obedecer, e superiores, que devem mandar. Não há percepção nem prática da igualdade como um direito. Nossa sociedade também é autoritária porque é violenta (nos termos em que, no estudo da ética, definimos a violência): nela vigoram racismo, machismo, discriminação religiosa e de classe social, desigualdades econômicas das maiores do mundo, exclusões culturais e políticas. Não há percepção nem prática do direito à liberdade. O autoritarismo social e as desigualdades econômicas fazem com que a sociedade brasileira esteja polarizada entre as carências das camadas populares e os interesses das classes abastadas e dominantes, sem conseguir ultrapassar carências e interesses e alcançar a esfera dos direitos. Os interesses, porque não se transformam em direitos, tornam-se privilégios de alguns, de sorte que a polarização social se efetua entre os despossuídos (os carentes) e os privilegiados. Estes, porque são portadores dos conhecimentos técnicos e científicos, são os “competentes”, cabendo-lhes a direção da sociedade. Como vimos, uma carência é sempre específica, sem conseguir generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito. Um privilégio, por definição, é sempre particular, não podendo generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito, pois, se tal ocorresse, deixaria de ser privilégio. Ora, a democracia é criação e garantia de direitos. Nossa sociedade, polarizada entre a carência e o privilégio, não consegue ser democrática, pois não encontra meios para isso. Esse conjunto de determinações sociais manifesta-se na esfera política. Em lugar de democracia, temos instituições vindas dela, mas operando de modo autoritário. Assim, por exemplo, os partidos políticos costumam ser de três tipos: os clientelistas, que mantêm relações de favor com seus eleitores, os vanguardistas, que substituem seus eleitores pela vontade dos dirigentes partidários, e os populistas, que tratam seus eleitores como um pai de família (o despotes) trata seus filhos menores. Favor, substituição e paternalismo evidenciam que a prática da participação política, através de representantes, não consegue se realizar no Brasil. Os representantes, em lugar de cumprir o mandato que lhes foi dado pelos representados, surgem como chefes, mandantes, detentores de favores e poderes, submetendo os representados, transformando-os em clientes que recebem favores dos mandantes. A “indústria política” – isto é, a criação da imagem dos políticos pelos meios de comunicação de massa para a venda do político aos eleitores-consumidores -, aliada à estrutura social do país, alimenta um imaginário político autoritário. As lideranças políticas são sempre imaginadas como chefes salvadores da nação, verdadeiros messias escolhidos por Deus e referendados pelo voto dos eleitores. Na verdade, não somos realmente eleitores (os que escolhem), mas meros votantes (os que dão o voto para alguém). A imagem populista e messiânica dos governantes indica que a concepção teocrática do poder não desapareceu: ainda se acredita no governante como enviado das divindades (o número de políticos ligados a astrólogos e videntes fala por si mesmo) e que sua vontade tem força de lei. As leis, porque exprimem ou os privilégios dos poderosos ou a vontade pessoal dos governantes, não são vistas como expressão de direitos nem de vontades e decisões públicas coletivas. O poder judiciário aparece como misterioso, envolto num saber incompreensível e numa autoridade quase mística. Por isso mesmo, aceita-se que a legalidade seja, por um lado, incompreensível, e, por outro, ineficiente (a impunidade não reina livre e solta?) e que a única relação possível com ela seja a da transgressão (o famoso “jeitinho”). Como se observa, a democracia, no Brasil, ainda está por ser inventada.
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i Parece estranho falar em “minoria” para referir-se a mulheres, negros, idosos, crianças, pois quantitativamente formam a maioria. É que a palavra minoria não é usada em sentido quantitativo, mas qualitativo. Quando o pensamento político liberal definiu os que teriam direito à cidadania, usou como critério a idéia de maioridade racional: seriam cidadãos aqueles que houvessem alcançado o pleno uso da razão. Alcançaram o pleno uso da razão ou a maioridade racional os que são independentes, isto é, não dependem de outros para viver. São independentes os proprietários privados dos meios de produção e os profissionais liberais. São dependentes e, portanto, em estado de minoridade racional: as mulheres, as crianças, os adolescentes, os trabalhadores e os “selvagens primitivos” (africanos e índios). Formam a minoria. Como há outros grupos cujos direitos não são reconhecidos (por exemplo, os homossexuais), fala-se em “minorias”. A “maioridade” liberal refere-se, pois, ao homem adulto branco proprietário ou profissional liberal.